Por Iara Tatiana Bonin (Doutora em Educação/UFRGS)
Cláudio, Gilson, Marcelo, Marina, Márcio, Ramona, Francisco, César,
Edson, Mário, Valdir, Lucas, Ademir... Nomes tão conhecidos, nomes
comuns… Uma listagem com 48(1) nomes de pessoas quase anônimas,
daquelas que não contam nas estatísticas, que pesam pouco nas
contagens oficiais, as que menos pessoas que também sonhavam
com dias melhores, mortos agora, vítimas da violência
cometida contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul.
Nomes são marcas que nos individualizam, que nos identificam,
e por isso é certamente mais fácil lidar com números, quando se
trata de expor a violência. A morte parece menos contundente
quando remetida ao campo da estatística.
Mas os nomes falam, sussurram histórias pessoais, lembram
pessoas que conhecemos, põem em evidência a humanidade e
a materialidade das vidas que foram roubadas. Ao lermos
os casos de assassinatos noticiados pelos jornais, esses
nomes já não nos são indiferentes, especialmente
quando se descrevem as condições das mortes:
espancamentos, corpos mutilados por inúmeras
facadas ou tiros, enforcamentos, estupros seguidos de
morte,uso de meios cruéis, assassinatos praticados
diante de crianças, com participação de mulheres
e adolescentes. Dados que denunciam uma situação
insustentável, e que pode ser vista como
um grande grito de socorro.
Todos esses nomes pertencem a pessoas que compartilhavam
a vida com outras – eram filhos e filhas, pais e mães, irmãs e irmãos,
sobrinhos e netos,eram parte de uma família, de uma comunidade,
de um povo, de uma rede de relações que há muito está ameaçada.
E a ameaça não é a barbárie ou a falta de civilidade, que muita gente
insiste em atribuir aos índios, mas sim a omissão do poder público,
a situação de confinamento em que vivem, a falta de terra, a falta de
condições adequadas para organizar e manter a vida, a falta de
perspectivas, a ausência de justiça e de direitos. A vida dos
Guarani-Kaiowá está ameaçada pelo confinamento de uma
imensa população em pequenas áreas, que por sua vez é resultado
de uma insaciável sede de produção, de lucratividade, de
acumulação que nos torna cegos para as injustiças decorrentes
do modelo de desenvolvimento que adotamos como único
e inquestionável.
Os Guarani-Kaiowá vivem um estado de exceção, parecido
com aquele experimentado em tempos de guerra ou de repressão,
só que para eles sso se tornou rotineiro e, para nós, parece não
fazer diferença. Viver em confinamento, enfrentar a escassez,
a fome, a violência, o descaso, o preconceito, a falta de assistência,
é uma rotina que torna impossível manter laços de solidariedade,
e vivenciar certas tradições, certos costumes que regulam as
relações sociais nestas comunidades. Se a desnutrição infantil,
noticiada com destaque anteriormente no estado do Mato Grosso
do Sul, parecia abalar aquela sensação de que vivemos num país
de fartura e de democracia, as notícias de assassinatos indígenas
que agora nos chegam desse mesmo lugar parecem não produzir
o mesmo efeito. Será que realmente acreditamos se tratar de violência
interna, de conflitos entre índios, e pensamos que nada temos a ver
com isso? Se nos conforta essa certeza, é necessário, então, sacudirmos
a poeira que recobre o que chamamos de justiça e reconhecer que a
violência que assola a vida indígena tem causas implicadas
diretamente com nossas vidas, com nosso modelo de sociedade
e com as escolhas que temos feito em termos sociais e políticos.
Temos tudo a ver com essa lista de nomes de mortos, bem como
com as incontáveis listas de pessoas submetidas à semi-escravidão
e a condições desumanas de sobrevivência em cada canto desse país.
Temos tudo a ver com as concessões dadas a grandes empresas,
com a acumulação de terras em latifúndios, com a ampliação dos
já imensos plantios de soja, cana-de-açúcar, eucaliptos, e dos cada
vez mais amplos campos de criação de gado. E temos também tudo
a ver com os desvios de recursos e com a priorização dada a setores
financeiros, restringindo sempre mais os investimentos em questões
sociais, entre elas a demarcação das terras indígenas. Afinal, todos
nós participamos da consolidação de certas formas de governo
, consciente ou inconscientemente, falando ou calando, e desse
modo legitimamos certas estratégias políticas e acatamos a omissão de
tantos direitos sociais.
Se as vítimas indígenas em Mato Grosso do Sul têm nomes, os
agressores também têm! Não se trata de responsabilizar
apenas a mão que empunhou a arma, a faca, o terçado, a corda
da forca, ou que desferiu os golpes, espancando e matando a pauladas
. Trata-se de atribuir responsabilidades também, e principalmente,
ao poder público, ao Estado brasileiro e ao Governo Federal pela
negligência e pelo descaso que leva ao não cumprimento dos
direitos constitucionais dos povos indígenas. Se a responsabilidade
em demarcar terras indígenas suficientes e adequadas – assegurando
assistência e respeito pelas culturas, crenças, tradições e estilos de
vida dos distintos povos indígenas – fosse efetivamente assumida
pelo Governo Federal, é possível que estes cruéis assassinatos não
acontecessem. Isso porque, ao assegurar o restabelecimento das
condições de vida e de dignidadedesta população, seria possível
vislumbrar um futuro pelo qual vale a pena viver e lutar.
Não se trata de assegurar privilégios aos indígenas, como muitos
costumam afirmar, mas de resguardar seus direitos, constantes
nas leis brasileiras e referendados, também, em diversos
documentos, convenções e normas internacionais.
Pensar nos nomes, nos rostos, na agonia dessas tantas vítimas do
descaso e do confinamento nos causa desalento, e é necessário levar
em conta que elas tinham diferentes idades... 12, 13, 14, 15, 16 anos!
Adolescentes ainda, esfaqueados, violentados, espancados, sem
possibilidades de defesa. Adolescentes como nossos filhos,
irmãos, netos, passeando, divertindo-se ou a caminho de casa,
vítimas da mesma violência que nos apavora quando nossos
familiares saem para seus afazeres cotidianos. As vítimas,
com seus nomes,histórias e vivências, eram pessoas como
nós, para quem certamente a justiça se faz bem mais justa.
Também foram assassinados homens e mulheres Kaiowá de 18,
20, 22, 25 anos,outros de 30, 32, 36; 40, 60, 70, 107 anos! E, diante
desse amplo espectro de dor, não podemos mais escapar à pergunta:
qual a parte que nos cabe neste grande genocídio? Talvez
devêssemos nos perguntar: que tipo de mundo estamos colaborando
para construir? Quais são os valores que cultivamos? Quem são as pessoas que contam e pelas quais
nos mobilizamos para assegurar a vida? Quais são as causas
pelas quais lutamos? O que ainda é capaz de nos indignar?
E, necessariamente devemos indagar sobre as ações daqueles
que escolhemos para nos representar e para fazer valer nossos
direitos de cidadania e para resguardar nossa condição de homens
e mulheres que,diante da lei, desfrutam dos inalienáveis direitos à
vida, à dignidade, à liberdade, à segurança.
Devemos nos sentir responsáveis, como pessoas e como cidadãos,
pelas grandes injustiças cometidas contra aqueles que se tornam cada
vez mais vulneráveis,em especial os povos indígenas para quem
reservamos áreas cada vez menores, e de quem a cada dia subtraímos
mais e mais as condições de bem viver. Mas,acima de tudo, devemos
atribuir responsabilidade àqueles que, ao assumir o governo,
assumiram a inegável atribuição de zelar pelo bem de todos, e de cada um.