24 de dezembro de 2006

Senzalas modernas

O lugar era escuro, pequeno e abafado.

Havia uma só porta e pequenas frestas para a entrada de ar.

O solo era de terra batida.

A alimentação eram os restos de comida dos fazendeiros.

E pensar que o fim da escravidão foi em 13 de maio de 1888...



Esta é a realidade de uma das senzalas modernas que estão distribuídas pelos 27 estados brasileiros. De 1995 até 2006, 18 mil pessoas que estavam vivendo em regime de escravidão ganharam a liberdade em decorrência das operações de fiscalização realizadas pelo governo federal. Mas a realidade do trabalhador brasileiro ainda é precária. Afinal, existem pessoas que não conseguiram sair desta situação.

Uma das pessoas que está no front desta guerra é o jornalista e criador da Ong Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, que há cinco anos tenta acabar com processo de escravidão dos trabalhadores e garantir dignidade e respeito para muitos que não tiveram a oportunidade de serem livres.

Sakamoto, que trabalhou em veículos como Revista Terra e editora Abril, conta que o seu envolvimento com causas sociais começou desde cedo, tanto que a escolha pelo jornalismo foi uma forma de instrumentalizar isto. “Já na época da faculdade eu queria fazer algo diferente. Algo que pudesse mudar esta situação de desigualdade social. Eu não queria ficar preso na redação. Eu queria visitar locais esquecidos e relatar o que acontecia nestes lugares, inserindo estes lugares e suas histórias na pauta dos grandes veículos“.

Para o jornalista, a situação no país é precária porque ainda faltam políticas duras que inibam os fazendeiros a manter trabalhadores escravos. “A punição ainda sai barata para o fazendeiro porque, hoje, ela só acontece no âmbito econômico e não no criminal. Embora já existam projetos de lei tramitando na justiça, tudo está caminhando a passos lentos“. “Hoje, só existe uma pessoa foi condenada por trabalho escravo, mas ela não foi para a cadeia. Ela teve que pagar em cestas básicas“.

O jornalista afirma que as prisões não acontecem por causa da morosidade da justiça e também porque há lacunas na legislação que não definem se a pessoa deve ser julgada em competência federal ou estadual.

E enquanto os processos se acumulam nas salas de juízes e a justiça caminha a passos mais lentos do que nunca, os aliciadores de trabalhadores, ou melhor, os famosos ‘gatos’ continuam tão rápidos como os carros de fórmula um. Para se ter idéia de como os ‘gatunos’ têm trabalhado bem, de janeiro a agosto deste ano o grupo de fiscalização do Ministério do Trabalho (MTE) já encontrou e libertou 1744 pessoas. No Pará, durante o período de 1995 e 2003, registrou que 4571 trabalhadores estavam vivendo em regime de escravidão. Estes deram a sorte de serem libertados, mas quantos ainda estão presos por ai?

Na tentativa de mudar a realidade o jornalista decidiu que tinha que fazer algo. Era necessário alertar a sociedade, a mídia e autoridades sobre o tamanho problema que o país tinha. “Não dava mais para fechar os olhos e ignorar tanta crueldade. Era impossível só fazer matéria sobre lugares com problemas sociais graves e nada mudar. Automaticamente, você é empurrado para uma ação direta e, embora em certos momentos lhe venha à mente aquela coisa da faculdade que você é um observador neutro, cada vez mais você sente que precisa participar“.


Nascia assim a Repórter Brasil


O trabalho da ong consiste em fortalecer a divulgação de reportagens sobre o tema e desenvolver projetos sociais que contribuam com a erradicação do trabalho-escravo.

Hoje, a Repórter Brasil tem três grandes eixos. O primeiro é fazer matérias sobre direitos humanos, dar palestras e divulgar informações sobre o tema; o segundo é manter um plano de comunicação comunitária, onde um grupo da ong capacita jovens em todo Brasil, com o intuito de fazer com que esses jovens criem veículos de comunicação na sua própria cidade; o terceiro eixo é a parte de jornalismo e o combate ao trabalho escravo.

O projeto carro-chefe da Repórter Brasil é o 'Trabalho Escravo Nem Pensar' que tem como meta capacitar professores e lideranças populares nos locais onde há ocorrência de trabalho escravo para que estes professores trabalhem com o tema com a comunidade deste cedo. Um grupo da ong fica em um determinado local, durante uma semana, orienta as pessoas para que elas fiquem atentas aos ‘gatos’ [pessoas que ‘contratam’ trabalhadores e os mantêm em regime de escravidão]. Nestes últimos três anos, foram 1000 pessoas em 15 cidades que receberam a capacitação.

Com este trabalho Sakamoto conseguiu o que tanto sonhava: se realizar profissionalmente, ou seja, inserir as pautas que tanto queria quando trabalhava na grande mídia e ao mesmo tempo alertar a sociedade e as autoridades de como o trabalhador vinha sendo escravizado. "Quando você vê uma situação de desigualdade tão forte como hoje e você fica calado você é conivente. E eu não queria ser deste jeito. Eu queria fazer alguma coisa para tentar mudar isto. Não queria fica preso na pauta diária eu queria ir além disso".

Para o jornalista o mais importante é que a partir da criação da Repórter Brasil e, principalmente, da agência de notícias, que foi nasceu em abril deste ano, o tema acabou ficando em maior evidência na mídia. “O principal é colocar a mostra o problema na sociedade de um modo que este problema seja discutido. A mídia tem este objetivo de expor esta ferida e não deixar que a esqueçam, ou seja, fazer com que o assunto esteja em todos os lugares possíveis em impossíveis. Ela tem que mostrar que a Reforma Agrária é necessária e que não adianta dar terra para o trabalhador, tem que ensiná-lo a plantar de foram correta, garantir escoamento da produção dele, entre outras coisas, como a garantia de material abaixo do custo para o pequeno produtor, por exemplo.

Quanto a forma dos textos da agência, Sakamoto enfatiza que não é necessário dramatizar a reportagem ao extremo, afinal, o mais importante é alertar as pessoas, para que elas pressionem o poder público e este tome as providências necessárias. “Não precisa no texto escrever ‘a pobre da criancinha...’, basta que colocar a verdade. Com isto, você ajuda a mudar leis, a fiscalizá-las, punir culpados, porque a mídia tem um poder fundamental para contribuir com a luta do trabalho escravo. Sem a mídia, o combate ao trabalho escravo não estaria forte como hoje".


Boa cobertura transforma a realidade sim!


Um exemplo de que uma boa cobertura pode fazer a diferença é a pesquisa que a ong fez a pedido do governo federal, que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo.

O objetivo era fazer um levantamento sobre as relações comerciais de 100 fazendas, que possuíam trabalhadores escravos, com varejo e o mercado internacional. Segundo o jornalista da Repórter Brasil, eles descobriram que 200 empresas nacionais e internacionais vendiam produtos que haviam sido produzidos por trabalhadores escravos.

As empresas eram de diversos seguimentos como: café, carne, cana-de-açúcar, algodão, soja, pimenta do reino, aço, entre outras. “Atingimos diversas empresas que se somarmos equivale a um PIB (soma riquezas internas do país) de mais de 40%“.

Após a realização da pesquisa, a Repórter Brasil, juntamente, com o Instituto Ethos e a Organização Mundial do Trabalho criaram o Pacto Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, no qual as empresas que estavam no levantamento se comprometeram a não comprar mais daquelas fazendas que tinham trabalhadores escravos.

Por causa do pacto, muitas fazendas foram à falência, outras tiveram que mudar o nome ou até mesmo serem vendidas. Isto é, o trabalho escravo passou a ser mau negócio para muita gente. Sakamoto explica que, após o acordo, as empresas passaram a verificar se estão comprando de fazendas com trabalhadores escravos ou não. “A pesquisa foi uma experiência interessante porque a cadeia produtiva se tornou uma política pública de combate ao trabalho escravo e é considerada até hoje, como uma das principais políticas já feitas“, garante o jornalista.

É por meio de medidas como esta que a ong deixa claro que o seu trabalho não se resume a apenas diminuir os números de trabalhadores escravos, mas sim fazer com que crianças e adultos não tenham a infância e a dignidade roubadas porque um fazendeiro ou empresário quer aumentar o seu lucro a qualquer custo. A Repórter Brasil quer garantir que não existam mais casos como o de José*, que ficou preso como escravo em uma fazenda por dez anos, e o de Pedro*, que aos treze anos já era escravo em uma propriedade rural. O menino, que há dois anos trocou os brinquedos, a escola e os amigos pela motoserra, tinha como sonho ser caminhoneiro para ir bem longe da fazenda. No dia em que foi libertado, 1º de maio, mal sabia o significado da data... E pensar que a escravidão foi naquele mesmo dia há 118 anos...


* Nome alterado para preservar a identidade das vítimas do trabalho escravo.

Um comentário:

Vivian disse...

Oi Bianca!

Vim dar uma olhadinha no blog e achei mto bom, parabéns! As matérias são ótimas e um alento numa época em que o social é tão marginalizado pela imprensa...
Bjão, adorei te conhecer!