24 de fevereiro de 2011

Escravidão em ferrovia concedida à ALL: detalhes e repercussão

Por Maurício Hashizume, da Repórter Brasil

São Paulo (SP) - O flagrante de trabalho escravo na manutenção da Ferrovia Santos-Mairinque, administrada pela América Latina Logística (ALL), ganhou destaque em dezembro último por dois motivos principais: pela prisão em flagrante do dono de empreiteira menor subcontratada para fazer o serviço e por ter ocorrido nas cercanias da maior cidade do país.

O caso reserva, porém, outros traços e pontos complementares que não vieram à tona na época do ocorrido. Novos detalhes - e o posterior comportamento das empresas e agentes envolvidos - são apresentados nesta reportagem especial da Repórter Brasil, que acompanhou todos os lances da operação.
Isolados no meio da Serra do Mar, alojamentos lotados não tinham estrutura adequada (Foto: MH)
Ao final da fiscalização, 51 trabalhadores foram libertados pela fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), em  ação conjunta com a Polícia Civil e com a Secretaria Estadual de Justiça e Defesa da Cidadania (SJDC). Todos atuavam na manutenção de trilhos e dormentes em trecho da ferrovia concedida à ALL que atravessa o Parque Estadual da Serra do Mar, entre Embu Guaçu (SP) e Santos (SP).

O quadro de aliciamento, retenção de documentos, cerceamento da liberdade e condições insalubres e desumanas (marcada pelos alojamentos precários e isolados em contêineres no meio da mata) - pintado pelo delegado Laerte Marzagão na entrevista coletiva convocada no dia da ação - ganha uma dimensão mais concreta nos depoimentos dos trabalhadores.

"A única lei que vale mesmo aqui é a de que o trem não pode parar", declarou uma das vítimas à Repórter Brasil. O próprio recrutamento das vítimas - boa parte delas vindas de Santo Amaro da Purificação (BA), atraídas, sob ardilosas promessas, por um intermediário da M S Teixeira (quarteirizada da ALL, que contratara inicialmente a Prumo Engenharia) que recebera R$ 50 por cada trabalhador arregimentado - teria sido solicitado, com urgência, para suprir a lacuna deixada por uma outra subempreiteira que perdera espaço na prestação de serviço. Esta última foi preterida por causa da verificação de tombamentos de composições em trechos por ela conservados, sem qualquer relação com as aviltantes condições trabalhistas oferecidas.

"O nosso trabalho garantia o funcionamento de uma das principais vias de circulação de mercadorias que movimenta o Brasil. Mas, assim como nas guerras, só os ´sargentos´ são lembrados. Nós, que estamos na ponta fazendo o nosso serviço, não somos valorizados", completou outro trabalhador. Os libertados recordaram de episódios em que, para recolocar vagões descarrilados de volta para os trilhos, fizeram intenso esforço físico desde a tarde de um dia até a manhã do outro, sem pausa ou refeição.

Nos dias normais de trabalho, conservadores de vias e auxiliares começavam os trabalhos às 7h e seguiam até às 17h, de domingo a domingo, com supostos descansos de oito dias a cada três semanas (22 dias). Se quisessem tirar as folgas asseguradas por lei, contudo, eles eram obrigados a desocupar os alojamentos mantidos pelos empregadores, como confirma outra vítima libertada. "Fui pedir a folga e disseram assim: ´Se quiser, tire. Mas fora do alojamento´. Eu não tinha onde ficar fora do alojamento. Nem o que comer. A única opção era continuar trabalhando".
Equipamentos sanitários irregulares e instalação
elétrica que oferecia até risco de morte (MH)  
O requinte do aliciamento em Santo Amaro da Purificação (BA) incluiu uma viagem de avião da capital baiana Salvador (BA) até Campinas (SP). Um preposto foi buscar diferentes grupos que chegaram ao longo de agosto de 2010 no Aeroporto de Viracopos. O combinado era de que, cumprida a tarefa, eles também retornariam em transporte aéreo. Além dos migrantes baianos, havia entre os 51 libertados moradores de São Vicente (SP), Embu Guaçu (SP) e outras localidades da região de cumprimento do serviço.

Quando chegaram ao local efetivo de trabalho, deram-se conta de que a situação seria outra. A promessa inicial de salário era de R$ 1 mil, com carteira assinada, por um período seguido de 22 dias de trabalho, seguido de oito dias de descanso. Ao final de mais de dois meses, alguns tinham recebido apenas R$ 680. A insatisfação aumentou em novembro do ano passado. Parte do grupo desistiu de permanecer no local e acabou voltando para a Bahia por conta própria. Outra parte foi deslocada da Serra do Mar para alojamento mantido no centro de Embu Guaçu (SP). Foi lá que a fiscalização encontrou as primeiras vítimas da escravidão contemporânea.

Testemunhos
Na chegada, a equipe de fiscalização foi recebida com uma enxurrada de relatos e informações sobre as situações extremas que tiveram de enfrentar na manutenção da Ferrovia Santos-Mairinque. O tempo médio gasto entre o pátio de alojamentos instalados na mata - próximo à antiga estação de Engenheiro Ferraz, no km 75 da ferrovia - até o meio urbano era de cerca de 4h, por causa das frequentes paradas do trem no caminho.

Muitos relataram ter passado frio e fome. Quando chegaram aos contêineres, alguns dormiram no chão. Para saciar a fome, tiveram de coletar banana verde no entorno para comer. No início, antes da estruturação da cozinha, marmitas chegavam com comida azeda nos alojamentos de Ferraz e de Pai Mathias, outro ponto isolado de abrigo. O banho só deixou de ser gelado na semana anterior à fiscalização, quando foi ligado um gerador movido a diesel. Antes disso, a água era esquentada na lata em fogueiras.

Para completar a situação, testemunharam agressões físicas de Marcioir Silveira Teixeira, dono da M S Teixeira, contra um dos trabalhadores. Era comum, conforme os testemunhos colhidos, que o próprio respondesse queixas com advertências enfáticas de que era "amigo" de policiais locais. Ameaças derivadas da exposição de facões e armas de fogo também foram registradas. Aliás, de acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, Marcioir permanece preso.
 
Trabalhadores atuavam na manutenção de trechos
da linha férrea que liga Santos a Mairinque (MH)
A falta de assistência em casos de adoecimento também motivou muitas reclamações. A dificuldade para o atendimento médico foi realçada no discurso dos trabalhadores. No próprio momento da fiscalização, um dos empregados, encarregado da preparar as refeições, sofria seguidas convulsões, foi socorrido e levado ao Hospital Geral do Grajaú.

Houve testemunhos também de ocasiões em que, perante a exigência de atestado médico por parte do empregador, trabalhadores se submeteram a consultas em alguns postos de saúde da região, mas não encontraram médicos dispostos a assinar documentos dessa natureza. Durante à noite, houve até quem permanecesse trancado nos contêineres de metal que, dentro ou fora, não respeitavam nenhum padrão estabelecido.

Depois do primeiro contato, a fiscalização seguiu para verificar os alojamentos no meio da Serra do Mar, não sem alguma dificuldade. No alojamento de Ferraz, constatou que a situação descrita pelos trabalhadores era de fato de extrema gravidade.  As instalações elétricas não tinham nenhum aterramento. Todo o ambiente oferecia diversos riscos de acidentes, inclusive com risco de morte - seja por queda ou por descarga elétrica. A água consumida e os banheiros utilizados eram inadequados. Não estavam sendo seguidas normas de higiene e de ventilação, sem contar a exposição aos insetos. Por tudo isso, o referido alojamento foi interditado durante a operação.

O custo da comida era descontado; até a parte destinada ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) que cabe ao contratante era cobrada à parte. Os próprios empregados recolheram tijolos da estações desativadas para fazer um "piso" na área comum para evitar o contato permanente com a lama. Havia ainda os extenuantes deslocamentos de ida e volta dos trabalhadores, à pé, para as frentes de trabalho no curso da linha, carregando pesadas ferramentas - máquinas, enxadas, marretas, picaretas etc. De acordo com a fiscalização, esses deslocamentos eram de até 14 km. Os resgatados foram acolhidos pela SJDC e depois retornaram para os municípios de origem.

ALL
No primeiro e único comunicado que divulgou sobre o caso até o momento, a principal concessionária envolvida foi categórica em declarar publicamente que o "evento que envolveu a contratação irregular de trabalhadores não contou com a cooperação ou concordância da ALL".

Depoimentos dados por trabalhadores e pelos próprios funcionários da ALL à Polícia Civil, à fiscalização trabalhista e à Repórter Brasil desmentem essa alegação. Empregados da companhia tinham pleno conhecimento, acompanhavam cotidianamente e até supervisionavam as atividades dos conservadores de via submetidos a condições análogas à escravidão. No alojamento de Pai Mathias, um representante fixo da ALL foi acusado de impedir diretamente o direito de ir e vir dos trabalhadores, impedindo o acesso aos trens, com recursos de truculência e hostilidade.
Em nota, ALL negou cooperação ou concordância;
apurações desmentem alegação da empresa (MH)
Vários libertados relataram ter recebido regularmente instruções diretas de funcionários da ALL, inclusive com cobrança de metas de produtividade por parte de representantes diretos da concessionária.

"O que mais chamou a atenção da equipe foi o nível de degradação a que eram submetidos os trabalhadores, aliado à absoluto descaso da empresa ALL. A empresa mantinha profissionais de alto nível nos locais fiscalizados, sendo beneficiária direta da mão de obra desses trabalhadores. Mesmo assim, não tomou qualquer medida para evitar que essa situação permanecesse", reforça o auditor fiscal do trabalho Luis Alexandre de Faria, que atuou como um dos coordenadores da operação pela SRTE/SP.

A conexão entre as envolvidas é dissecada no relatório de fiscalização. "Pelo contexto probatório e resultado da auditoria trabalhista efetuada, a empresa ALL - América Latina Logística Malha Paulista S.A deve ser diretamente responsabilizada pelas graves situações apontadas; as relações empresariais mantidas pela ALL com intermediadoras de mão de obra, como a Prumo Engenharia Ltda. ou M S Teixeira & Cia Ltda, prestam-se tão somente ao mascaramento do vínculo empregatício direto com a beneficiária final, e devem ser repudiadas e desconsideradas pelo Poder Público".

Ao todo, foram 33 autos de infração endereçados à ALL, que se apresenta como a maior empresa de logística com base ferroviária da América Latina. O valor bruto das rescisões de trabalho, também dirigido à concessionária, somou R$ 392,6 mil. A ALL, porém, "se recusou a assumir a responsabilidade pelos contratos de trabalho: as anotações e pagamentos foram feitos em nome da empresa intermediária Prumo Engenharia Ltda.", segue trecho do relatório de fiscalização trabalhista, que foi encaminhado para outros órgãos públicos como o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2); a Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região (PRT-2) - Ofício de Osasco (SP); e o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF/SP).

Contactada, a ALL não respondeu as questões referentes ao caso formuladas pela Repórter Brasil, enviadas há mais de um mês (18 de janeiro). Uma das justificativas apresentadas foi a de que a longa espera por respostas estava relacionada com a dedicação da empresa à organização de sua convenção anual, que acabou sendo realizada de 27 a 29 de janeiro em um hotel de luxo em Florianópólis (SC). A decoração do evento - pontuado por premiações e apresentações de resultados de 2010 - foi inspirada no Cirque du Soleil e contou com palestra do ex-jogador Zico e presença da ex-participante do reality show televisivo Big Brother Brasil (BBB), Priscila Pires.
Grupo de libertados durante a operação aguarda transporte na Estação Evangelista de Souza (MH)

PrumoA Promotoria de Justiça de Embu Guaçu (SP) ofereceu acusação formal contra Marcioir, da M S Teixeira, por redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão. A denúncia da promotora Maria Gabriela Prado Manssur à Justiça, datada de 30 de dezembro de 2010, inclui ainda Joel da Silva Santos, gerente de Recursos Humanos da M S Teixeira, e Harley de Paula Silva, gerente regional de obras da Prumo Engenharia, que foi contratada pela ALL e subcontratou a MS Teixeira para a manutenção de ferrovias.

Em nota enviada à Repórter Brasil, a Prumo Engenharia atribui o ocorrido principalmente à qualidade insatisfatória da subsidiária M S Teixeira - mesmo que a nota da ALL tenha classificado a Prumo como "responsável" pelos trabalhadores posteriormente libertados.

Fernando Vaz, que assina o comunicado como sócio-gerente da Prumo, "reitera sua comunicação de repúdio e indignação com relação às denúncias de trabalho escravo e aliciamento de trabalhadores em face da M S Teixeira e seu proprietário Marcioir Teixeira Silveira nas frentes de serviço de manutenção da via permanente do trecho entre Evangelista e Paratinga".

A Prumo enfatiza ainda os mais de 30 anos de atuação no setor "sem máculas na sua conduta" e explica que a "contratação da empresa M S Teixeira foi feita para reforçar o ritmo dos serviços" relativos ao objeto do contrato firmado com a ALL "a partir de agosto de 2010". Nas palavras do gerente da construtora, a M S Teixeira teve o seu contrato rescindido no início de novembro "por não ter apresentado o padrão de qualidade exigido". A subcontratação, completou a Prumo, não é prática constante da empresa.

Mesmo assim, a Prumo sustenta que, após a blitz, "prestou todo apoio e assistência aos ex-trabalhadores da M S Teixeira". A empresa, que mantém sua sede em Formiga (MG), admite ter arcado com as verbas rescisórias devidas, "por se tratar de responsável subsidiária na esfera trabalhista no que se refere aos direitos sonegados, sendo esta a sua única responsabilidade pelo lamentável fato em questão". Funcionário da Prumo garantiu à Repórter Brasil, porém, que técnicos de segurança de trabalho tinham vistoriado os alojamentos problemáticos um mês antes da interdição.

Tentativa inócua de se afastar do caso provoca
troca de acusações entre envolvidas (MH)
Sobre a acusação contra o gerente Harley, a Prumo Engenharia afirma que "providenciará sua defesa em momento oportuno". Em depoimento gravado no ato do flagrante, Joel, que é gerente da M S Teixeira e também foi denunciado pelo Ministério Público Estadual, fez afirmações que colidem com o posicionamento da construtora.

De acordo com Joel, o acerto entre as duas empresas previa que o alojamento e a alimentação dos empregados ficariam a cargo da Prumo, enquanto a M S Teixeira trataria da contratação e pagamento dos salários, sob monitoramento direto e sistemático do pessoal interno da ALL. O aliciamento de trabalhadores na Bahia, segundo o mesmo, teria sido realizado a pedido e com autorização da Prumo. Apesar do rompimento anunciado para o início de novembro, nenhum trabalhador havia sido devidamente remunerado pelos serviços prestados à M S Teixeira e contratado formalmente pela Prumo no momento da fiscalização.

Na versão de Joel, a Prumo é que vinha descumprindo o contrato entre as partes, com sucessivos atrasos de pagamento. Para ele, o acordo firmado não era o mais adequado do ponto de vista jurídico e estava sendo revisado por advogados. Ele concorda que os empregados deslocados para a manutenção da ferrovia nos alojamentos Ferraz e Pai Mathias estavam em situação precária. Do ponto de vista do gerente da M S Teixeira, a responsabilidade era compartilhada entre as duas empresas

Em depoimento exclusivo à Repórter Brasil, Marcioir confirmou ainda já ter trabalhado como quarteirizado para a ALL em pelo menos outras duas oportunidades anteriores. Há alguns anos, ele atuara no mesmo regime de subcontratação na manutenção de rodovias concedidas à ALL no Rio Grande do Sul. A partir dessa experiência, ele montou a empresa M S Teixeira com outros ex-conservadores gaúchos. Em 2009, a empresa conseguira o seu primeiro contrato em São Paulo, para fazer a manutenção de outro segmento da mesma ferrovia mais próximo ao Porto de Santos (SP).

A troca de acusações não poupa ninguém, mas, em certa medida, as próprias envolvidas deixam escapar alguns dos motivos por trás do flagrante na ferrovia. As afirmações dos representantes da M S Teixeira corroboram a inexistência de idoneidade da própria para prestar serviços do gênero. O pagamento dos salários dos trabalhadores registrados pela M S Teixeira dependia inexoravelmente do repasse anterior da Prumo.

Quanto à Prumo, a frase em letras negras gravada no uniforme laranja (foto acima) usado por um dos libertados ajuda a resumir aquilo que a direção teima em refutar: "Você é responsável pela sua segurança".

No tocante à ALL - que entrou com recurso no Tribunal Superior do Trabalho (TST) contra ação que pede o fim da conservação terceirizada das vias pemanentes e para a qual a reportagem abriu espaço de manifestação -, a incisiva auto-afirmação também acaba sendo bastante explicativa. O lema escolhido para acompanhar a conhecida marca da companhia não dá margem para muita hesitação: "A gente nunca para".

12 de fevereiro de 2011

A maior hidrelétrica do mundo insiste em negar dívida com indígenas

Território Guarani, Brasil. A maior hidrelétrica do mundo em termos de geração de energia, Itaipu, localizada no rio Paraná, entre o Brasil e o Paraguai, completa, em 2012, 30 anos de funcionamento. Apesar da imensa riqueza que a usina já gerou nessas três décadas, a empresa que a administra foi incapaz, até hoje, de saldar a dívida que gerou com a remoção de dezenas de comunidades indígenas guarani para a formação de seu lago.
Itaipu, tem um nome em lingua guarani, “pedra que canta”, e foi construída em pleno território indígena, em lugar onde, há séculos, os cronistas e historiadores registram a presença de grupos guarani. Estima-se que quase 100 comunidades guarani – falantes dos dialetos nhandeva (conhecidos como Avá-Guarani) e mbya – sofreram o impacto da instalação da usina, e a imensa maioria delas até hoje não recebeu compensação adequada pelos territórios tradicionais que perderam: mais de 80 mil hectares, só do lado brasileiro, segundo cálculos de estudiosos.

José (nome fictício), 52, era só um jovem quando a área onde morava, Oco’y Jacutinga, foi atingida pelo lago formado por Itaipu, sendo obrigado a mudar radicalmente um estilo de vida que, hoje, só sobrevive em suas memórias: “A gente tinha mato suficiente para caçar, rio para pescar, espaço para nossa cultura”. Depois que surgiu Itaipu, tudo mudou. Em 1982, ele foi morar na recém-criada aldeia avá-guarani do Oco’y, na beira do lago de Itaipu, em São Miguel do Iguaçu (PR). Poucos anos depois, com a rápida superlotação daqueles 251 hectares, participou do movimento que pressionou pela constituição de nova aldeia guarani. 

Em 1997, surgiu o Tekoha Añetete, terra indígena localizada em Diamante D’Oeste (PR). Eram 1.744 hectares comprados por Itaipu. Ainda assim, era pouca terra. Tanto que, 11 anos depois, ele partiu com 17 famílias aliadas para fundar nova aldeia, a Vy’a Renda Poty, ocupação de 109 hectares não regularizada, próxima a Santa Helena (PR). 

De acordo com informações dos indígenas, colhidas pela antropóloga Malu Brant, na região de Itaipu, do lado brasileiro, existiam ao menos 32 aldeias guarani. Elas desapareceram entre 1940 e 1982, período entre a criação do Parque Nacional do Iguaçu (1939) e o alagamento para formação do lago Itaipu (1982).
Pelo menos nove aldeias foram alagadas pela usina, de acordo com o levantamento da antropóloga, que iniciou pesquisa na região por solicitação da Justiça Federal de Foz do Iguaçu. O depoimento de dona Maria (nome fictício) repassa todo esse drama. Ela conta ter nascido em 1924, na mesma área onde morava seu Pedro antes da inundação, Oco’y Jacutinga. Nos anos 40, Narcisa presenciou um massacre. “Eu e minha família assistimos escondidos. Eu vi, eu vi, mataram tudo! Abriam a barriga com facão e jogavam depois nas Cataratas (do Iguaçu)”, contou ela a Malu. Nessa época, destaca a antropóloga, os Guarani da região do Parque Nacional do Iguaçu foram expulsos pelo antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF).

De nova localidade, na mesma região, a família de Maria foi expulsa em 1962 – também pelo IBDF – e seguiu para formar outra aldeia, junto a Foz do Iguaçu, de onde foram novamente afastados, dessa vez pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), segundo lembra (Malu explica que foi para promover o assentamento de colonos retirados da área do parque). Em 1981, Maria voltou à área onde nascera, que, por fim, foi alagada por Itaipu. Acabou indo morar no Oco’y, onde tiveram de se espremer dezenas de famílias.
A terra de Oco’y tem 7 km de comprimento por 240 metros de largura e os primeiros 100 metros a partir das bordas internas do lago são de usufruto de Itaipu, só os 140 metros restantes são destinados à população indígena. A aldeia é constituída de quatro lotes doados a quatro famílias indígenas. Isso quando, segundo os depoimentos, havia mais de 70 famílias em Oco’y Jacutinga, área próxima dali que foi alagada.

Ali, além de tudo, os Guarani disputam espaço com colonos. Os agrotóxicos usados pelos agricultores no entorno da aldeia poluem a água do lago, muitas vezes utilizada pelos indígenas. Além disso, Oco’y é o único local do estado do Paraná com incidência de malária. O controle da doença é feito por meio de borrifamento de um produto tóxico, que provoca mais contaminação. A comunidade sobrevive com cestas básicas doadas por Itaipu.

Añetete
A superpopulação em Oco’y, um dos únicos espaços disponíveis na região para refúgio dos índios depois que foi formado o lago da usina, gerou movimentos por novas demarcações de terra em poucos anos, como se viu na história de José. Mesmo a criação de Añetete, em 1997, não resolveu a questão de terras.

Além disso, ali, o acesso dos indígenas às habitações, desde a entrada, permanência, saída de famílias e a própria condução interna da exploração da terra, tudo é controlado por representantes de Itaipu, segundo a antropóloga. Os Guarani trabalham nas plantações comunitárias e recebem como pagamento cestas básicas. “Isso mantém uma relação de dependência com a usina”, denuncia. 

Na página da Itaipu na internet, uma frase destoa do que é relatado pelos indígenas: “Itaipu age para que os índios alcancem a independência econômica”. Segundo depoimentos colhidos pela antropóloga, Itaipu também estipula o número máximo de cinco novas famílias por ano que podem vir morar no Añetete. “Isso não ocorre em qualquer outro aldeamento guarani no Brasil, tratando-se de intervenção incorreta, arbitrária”.
Após novas pressões dos Guarani, em 2004, Itaipu adquiriu uma área com 509,5 hectares, a atual aldeia de Itamarã, também em Diamante D’Oeste (PR), onde foram morar 40 famílias. A aldeia Vy’a Renda Poty, onde vive José, está localizada em área pertencente ao Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). O local fica próximo à antiga aldeia de Dois Irmãos, uma das que hoje se encontram submersas pelas águas da Itaipu. “Essas retomadas de terra demonstram a urgente necessidade de ampliação territorial. É uma dívida histórica que o Estado brasileiro continua se negando a reconhecer”, relata Paulo Porto Borges, da Operação Amazônia Nativa (Opan), que acompanha os Guarani no oeste do Paraná desde 2000.

José afirma que Itaipu não presta nenhuma assistência em Vy’a Renda Poty. “Mesmo sendo culpa deles a nossa perda de território. A empresa diz que, se voltarmos para a aldeia Añetete, vamos receber cesta básica, só que não tem espaço lá. Eles tiraram nossas terras e agora precisamos deles até para se alimentar, não queremos isso.”

Para Malu Brant, a Funai foi omissa em todo o período histórico. Atualmente há três áreas em fase de identificação antropológica na região. “É necessário haver o reconhecimento das terras que eles perderam por conta desses megaprojetos e a identificação de áreas de acordo com o que eles tinham”, analisa.
Do lado paraguaio, o problema com Itaipu se arrasta até hoje também. Mario Rivarola, da Organização Nacional dos Aborígenes Independentes (Onai), relata que foram 60 as comunidades desalojadas por Itaipu nos anos de 1970. “Faziam promessas, diziam que iam reassentar e indenizar. Tudo ficou na teoria. Os que não aceitavam sair eram levados por policiais e militares”, diz. “O que mais dói é que obrigaram-nos a sair, mas algumas áreas não foram alagadas. Hoje estão ocupadas por fazendas.” 

Nhande reko
Os Guarani do Paraná integram uma extensa rede social, que começa no norte da Argentina e só termina nas aldeias do Espírito Santo. Deslocando-se através de fronteiras que não foram estabelecidas por eles, esses indígenas reivindicam dos governos dos países que hoje os abrigam o reconhecimento dessa condição transnacional.

Em fevereiro deste ano, aconteceu no Tekoha Añetete o 1º Encontro dos Povos Guarani da América do Sul, organizado pelo Ministério da Cultura do Brasil em parceria com o governo paraguaio e Itaipu. O reconhecimento, pelo Mercosul, dessa cidadania guarani que ultrapassa as fronteiras foi uma das principais reivindicações formuladas durante o evento. Convenientemente para as instituições envolvidas, o documento final do evento não fez menção à questão da terra.
Mas é justamente esse traço cultural guarani, sua gigantesca rede social, que Itaipu utiliza para justificar a superlotação nas aldeias, conforme texto no site da empresa na internet: “As migrações fazem parte da cultura avá-guarani. Esses índios costumam migrar frequentemente, mas sempre retornam aos locais de origem. (…) Isso contribuiu para o retorno daquelas famílias que, durante os anos 60 e 70, haviam migrado para o Paraguai. O retorno resultou em superpopulação na reserva do Oco’y”. Só faltou explicar que a migração para o Paraguai foi resultado de esbulho realizado pelo próprio governo brasileiro.

Procurado pela reportagem, Jair Kotz, superintendente de Gestão Ambiental de Itaipu, afirmou: “Itaipu considera que a comunidade, representada pela Funai e com o acompanhamento de várias outras entidades, foi reassentada, pelo Incra, em área de tamanho adequado, muito maior do que a até então ocupada. Posteriormente, a Itaipu, sempre de forma consensual com todos os envolvidos, adquiriu área ainda maior para a comunidade indígena, área escolhida por ela, somando-a àquela que já fora destinada originalmente”. Como se viu nos depoimentos aqui citados, a tal “forma consensual” com que Itaipu negociou as compensações territoriais não foi tão abrangente assim.

*Reportagem feita por Bianca Pyl para a edição especial da Caros Amigos de outubro de 2010 e publicada também no site Desinformemónos . Confira a versão em espanhol da matéria: La mayor hidroeléctrica del mundo niega su deuda con los guaranís

9 de fevereiro de 2011

Fazendeiro cobrava até lona de barraco dos escravizados

O grupo móvel de fiscalização e combate ao trabalho escravo libertou 20 pessoas que eram obrigadas a pagar até pela lona que cobria o barraco improvisado como alojamento. As vítimas foram encontradas no fim de janeiro em São João do Carú (MA), nas Fazendas Asa Branca I e II. Entre os escravizados, havia três adolescentes com 16 anos de idade e duas mulheres.

Todos foram aliciados em Paragominas (PA) por um "gato" (intermediário na contratação). Eles faziam a "limpeza" da área, retirando arbustos e ervas daninhas, para expansão da atividade pecuária.

Os empregados eram obrigados a viver em dois barracos cobertos por lona preta e folhas de bananeiras que eles mesmo construíram. A estrutura dos barracos era de madeira roliça, facilmente encontrada na mata nativa. "O custo era zero para o empregador, já que a madeira e as folhas de palmeira ainda podem ser colhidas gratuitamente", explica Klinger Moreira, auditor fiscal do trabalho que coordenou a operação do grupo móvel.

O metro de lona preta custa R$ 0,50. Mas nem com essa despesa o empregador Francisco Costa da Silva arcou. Ele pretendia descontar o valor do material dos vencimentos dos próprios empregados.

Para preparar a comida, os trabalhadores construíram um fogão de barro, para ser alimentado a lenha. O objeto dividia espaço com as redes. Não havia instalações sanitárias e as vítimas utilizavam as imediações dos barracos como banheiro. As pessoas se banhavam em um igarapé. Para garantir um mínimo de privacidade, o grupo fincou palhas de palmeira para cercar o espaço em volta do local que permitia acesso às águas.

As roupas de cama utilizadas, compara Klinger, era semelhante às de moradores de rua. "Eram sujas e esfarradas. Mesmo assim, eram as únicas que eles dispunham para se proteger à noite. Ressalto que essas roupas de cama foram trazidas de suas casas", conta o auditor fiscal.

O empregador cobrava também pela péssima comida que fornecia aos empregados. Não havia local adequado para armazenar os alimentos. A água consumida vinha de caçambas cavadas diretamente na terra ou em córregos próximos ao acampamento. Nas frentes de trabalho, não havia água potável, banheiro e local para refeições.

Nenhum trabalhador possuía registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). O empregador pagou mais de R$ 63 mil referentes à rescisão do contrato de trabalho. As vítimas retornaram ao Pará, tendo suas viagens custeadas pelo empregador. Parte dos libertados estava na propriedade há cerca de um mês, desde 26 dezembro.

Os 17 adultos terão direito às três parcelas do Seguro Desemprego para Trabalhador Resgatado. Foram lavrados 12 autos de infração. O procurador do trabalho Marcos Rosa também participou da ação.

A Repórter Brasil não conseguiu localizar o fazendeiro para comentar o caso.

Atlas revira entranhas do trabalho escravo

Apreendidos durante as fiscalizações, os cadernos com anotações de débitos servem normalmente para comprovar sistemas de servidão por dívidas existentes nos casos de trabalho escravo contemporâneo. Não foi diferente na operação trabalhista que libertou 27 pessoas submetidas à escravidão na Fazenda Sagrisa, em Codó (MA), que pertence ao Grupo Maratá, com sede em Lagarto (SE). Em novembro de 2005, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que estiveram no local encontraram oito cadernos na cantina da propriedade no interior do Maranhão.

Além dos registros de dívidas relativas a itens de alimentação, de higiene e até de ferramentas de trabalho, um dos cadernos trazia uma anotação diferente: "um dia de deixação de comer". Desesperado com a situação de endividamento a qual estava submetido, um dos trabalhadores preferiu cortar a própria alimentação para tentar "poupar" recursos e minimizar o tamanho da mordida dos "descontos" no fim do mês.

Entre os libertados, quatro eram adolescentes com idade inferior a 18 anos e uma criança de apenas 11 anos foi também flagrada trabalhando no local. Em depoimento, uma das vítimas declarou que nada recebeu pelo trabalho na Fazenda Sagrisa. Os próprios administradores da propriedade fiscalizada afirmaram na ocasião que os filhos do empresário José Augusto Vieira, dono do Grupo Maratá, administram parte do patrimônio do conglomerado, mas o próprio José Augusto "mantém o controle das decisões".

À Justiça, o "gato" (aliciador de mão de obra) Raimundo Nonato Pereira chegou ainda a confirmar que, quando necessário, comprava ferramentas aos trabalhadores e depois descontava dos salários dos mesmos, ratificando a prática de servidão por dívida. Segundo Raimundo, a água dos empregados realmente era a mesma utilizada pelo gado.

Mesmo com todas essas evidências colhidas pela fiscalização e compiladas pelo Ministério Público Federal do Maranhão (MPF/MA), o fazendeiro José Augusto Vieira e o "gato" Raimundo, conhecido como "Anão", foram absolvidos da acusação de crime de trabalho escravo. De acordo com a sentença da 1a Vara Federal de São Luís (MA) (confira histórico do processo) publicada em 2009, "a instrução processual não logrou demonstrar com grau de certeza necessária para estribar uma sentença condenatória".

Para a Justiça Federal do Maranhão, "os depoimentos prestados em juízo pelos fiscais [que atuaram nas libertações da Sagrisa] também não apresentam aptidão para darem ensejo a uma condenação, pois apenas confirmam o teor do relatório, o qual não é suficiente para demonstrar a efetiva existência das supostas condições aviltantes de trabalhos".

Uma das justificativas complementares apresentadas pelo Judiciário para absolver o empresário José Augusto foi a extensão do grupo. "O fazendeiro reside no estado de Sergipe e tem mais de doze fazendas no Maranhão o que torna quase impossível a sua presença constante em todas elas", salienta a sentença. O Grupo Maratá mantém empreendimentos nos setores agropecuário (pecuária, sucos, café e tabaco), alimentício, de embalagens e também de educação (Faculdade e Colégio José Augusto Vieira). Só a Fazenda Sagrisa tem cerca de 20 mil hectares.

O MPF/MA recorreu da decisão. Para o órgão, "a decisão de primeiro grau desprezou completamente a palavra das vítimas, que é essencial nessa espécie de delito, bem como a palavra dos fiscais que confirmaram em juízo todo um teor das autuações que lavaram". Por conta da operação, José Augusto Vieira entrou para a chamada "lista suja" do trabalho escravo, cadastro de infratores mantido pelo MTE, em dezembro de 2006. O nome do empresário do Grupo Maratá permaneceu até dezembro de 2007, quando o Judiciário concedeu liminar judicial para a retirada da relação.

Atlas Político-Jurídico reúne dados e informações
acerca da realidade da escravidão (Reprodução)
Realidades, como a acima retratada, fazem parte do Atlas Político-Jurídico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Maranhão, elaborado pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA). O documento foi lançado na última quinta-feira (27), como parte dos diversos eventos da Semana Nacional de mobilizações, por ocasião do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (28 de janeiro).

Inédito, o Atlas traz sete capítulos que partem do histórico da região sudoeste do Maranhão até avaliações críticas das políticas direcionadas ao combate à escravidão. A obra contém estudos específicos sobre as vítimas, sobre os empregadores proprietários das terras e sobre os "gatos" intermediários. Há ainda análises das fiscalizações, de processos em andamento no Poder Judiciário e de conexões existentes entre a escravidão e o poder político.

O Atlas compila dados e informações (que constam no acervo do CDVDH e que foram captadas junto a diferentes órgãos públicos), bem como depoimentos de vítimas da escravidão contemporânea que procuraram a entidade.

"Nós entendemos que esse material não deve estar restrito aos militantes de direitos humanos. É preciso divulgar, expor que o Judiciário, o Legislativo e o Executivo deixam a desejar no combate ao trabalho escravo", explica Nonato Masson, advogado do CDVDH e um dos autores do trabalho.

A comparação entre a quantidade de trabalhadores libertados do trabalho escravo nos últimos anos com o baixíssimo número de condenações criminais aparece com destaque no documento. O Atlas Político-Jurídico radiografou apenas 11 sentenças judiciais, com apenas 4 condenações, sendo duas de "prestação de serviço à comunidade". "Essa comparação ilustra bem a morosidade da Justiça. E quando há sentença, ela não é executada porque tramita em primeiro grau", emenda Nonato. A radiografia da escravidão identificou ainda diversas ameaças aos defensores de direitos humanos e descaso em relação às medidas judiciais por parte dos réus. As vítimas do trabalho escravo, por seu turno, relataram ter medo de se apresentar aos tribunais para confirmar seus depoimentos, em função das ameaças e violências que sofreram.

"A conclusão que chegamos é que não há política de Estado e de governo que de fato mude a vida dos peões. Não há um enfrentamento concreto", opina o advogado do CDVDH. "O Judiciário precisa ser mais rápido e efetivo na eliminação de entraves judiciais para a aplicação da lei com mais celeridade, por se tratar de um crime contra a humanidade; o Executivo precisa ser mais operacional no sentido de fazer avançar a construção de políticas publicas fazendo com que seus planos ganhem efetividade prática. Estes não podem ser apenas intenções políticas", aponta o documento.

Outros casosO Atlas Político-Jurídico também analisa o caso da Fazenda Agrossera, localizada em São Raimundo das Mangabeiras (MA), de propriedade de Pedro Augusto Ticianel. A área foi fiscalizada em outubro de 2005, pelo MTE, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), além de representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da Polícia Federal (PF).

Na ocasião, foram flagrados 103 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Com base no relatório da fiscalização, o MPF/MA apresentou denúncia contra seis responsáveis, entre os quais o proprietário Pedro Augusto Ticianel, além de gerentes e aliciadores. A denúncia foi recebida pela Justiça Federal em 16 de maio de 2006.
O Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF-1) declarou a Justiça Estadual como sendo competente para processar e julgar o crime. Posteriormente o Supremo Tribunal Federal (STF) reformou essa decisão e fixou a competência novamente para a Justiça Federal. Ao retornar para a Justiça Federal, foi prolatada a sentença de absolvição sumária, ou seja, sem que qualquer testemunha fosse ouvida em juízo.

A decisão se fundamenta na existência de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) relativo a questões trabalhistas - assinado por parte dos réus para com o MPT antes da lavratura dos autos de infração originados da fiscalização. A Agropecuária e Industrial Serra Grande (Agroserra) foi incluída pela primeira vez  na "lista suja" em dezembro de 2007. Desde então, foi retirada, incluída e retirada novamente por decisão liminar. A última delas, que mantém a empresa fora da lista, foi emitida em julho de 2009.

Também fazem parte do Atlas Político-Jurídico os processos que envolvem o juiz estadual Marcelo Testa Baldochi e Miguel Rezende, que já foi flagrado inúmeras vezes utilizando mão de obra escrava. Apenas na Fazenda Zonga - que fica em Bom Jardim (MA), dentro da Reserva Biológica (Rebio) de Gurupi -, que pertence a Miguel, foram cinco flagrantes de escravidão: 52 libertados em 1996, 32 em 1997, 69 em 2001, 13 em 2003 e, mais 45 em 2010.

Atualmente, Miguel, que já beira dos 80 anos de idade, responde, na Justiça, pelo crime de exploração de pessoas em condições análogas à escravidão na Fazenda Rezende, em Senador La Rocque (MA), flagrado em 2001. Outros dois crimes cometidos na mesma propriedade (em 1996 e 1997) prescreveram. Em 2003, auditores encontraram novamente 65 vítimas de escravidão na mesma área. O pecuarista Miguel de Souza Rezende já fez parte por três vezes da "lista suja" do trabalho escravo.

Marcelo Testa Baldochi, juiz estadual, também já foi relacionado na "lista suja", na atualização de dezembro de 2008. A inspeção que gerou a inclusão do juiz no cadastro foi realizada na Fazenda Pôr do Sol, de propriedade do magistrado, em setembro de 2007. No local, o grupo móvel encontrou 25 pessoas - entre elas um adolescente de 15 anos - em condições análogas à escravidão. De acordo com os trabalhadores, o próprio juiz orientou o grupo no sentido de declarar à fiscalização que estavam no local apenas como posseiros no plantio de roça, numa tentativa de descaracterizar o crime.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) teve de intervir, por solicitação do Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Maranhão (Sindjus-MA), para que o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA) instaure um processo disciplinar que apure a conduta do integrante da instituição. Por duas vezes (2007 e 2009), o TJ-MA rejeitara instalar processo contra juiz.

O juiz também é acusado de comandar pessoalmente um despejo violento de famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ocupavam justamente a Fazenda Pôr do Sol. O Ministério Público Estadual (MPE) denunciou inclusive a interferência de Marcelo Testa Baldochi em um dos processos de escravidão que envolve Miguel de Souza Rezende.