Por Bianca Pyl*
São Paulo (SP) - A casa branca, localizada em uma rua tranquila da Zona Norte da capital paulista, não levantava suspeita. Dentro dela, no entanto, 16 pessoas vindas da Bolívia viviam e eram explorados em condições de escravidão contemporânea na fabricação de roupas.
Fachada da casa onde a fiscalização encontrou o grupo de migrantes da Bolívia (Foto: SRTE/SP) |
Entre as vítimas, dois irmãos com 16 e 17 anos de idade e uma mulher com deficiência cognitiva. No local, a fiscalização constatou a degradação do ambiente, jornada exaustiva de trabalho e servidão por dívida, três traços que caracterizam o trabalho análogo ao de escravo -crime previsto no Art. 149 do Código Penal. As vítimas trabalham mais de 60 horas semanais para receber, em média, salário de R$ 400 mensais.
Descobriu-se que a encomenda das peças havia sido feita pela intermediária Dorbyn Fashion Ltda. - um entre os mais de 500 fornecedores da tradicional rede de lojas. O flagrante, registrado em 14 de março, motivou o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) a cobrar cerca de R$ 2,3 milhões da Pernambucanas, soma dos valores referentes a autuações com a notificação para recolhimento do Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS).
A Repórter Brasil acompanhou a operação comandada pela SRTE/SP. O cenário encontrado de condições degradantes apresentava diversos riscos à saúde e segurança das vítimas. Não há janelas ou qualquer tipo de ventilação no espaço apertado e quente. A insalubridade, a precariedade e o improviso marcavam tanto os ambientes de trabalho quanto os de descanso.
Crianças conviviam com adultos em ambientes considerados insalubres (Foto: SRTE/SP) |
As jornadas de trabalho eram exaustivas, sem pagamento de horas extras. Os "salários" não alcançavam o salário mínimo e muito menos o piso da categoria. Também foram recolhidas anotações referentes a descontos irregulares, artifício comum dentro do esquema de servidão por dívida. As passagens de ônibus para o Brasil eram "pagas" com trabalho intenso de costura.
Na chegada da equipe de fiscalização, os trabalhadores deixaram transparecer a apreensão. "Medo de ter que ir embora sem nada", disse um deles. Um costureiro interrompe o depoimento do outro e poucos falam abertamente sobre as condições em que vivem. Mesmo assim, Joana** relatou que "quanto mais rápido se trabalha, mais se pode ganhar". Ela e seus companheiros de trabalho não tinham, contudo, acesso ao controle de sua produção e nem quanto receberia por peça. As jovens nunca viram as roupas que produzem na loja e nunca compraram nada nas lojas Pernambucanas.
A primeira pergunta que Joana** fez às autoridades presentes veio de chofre: "Eu posso estudar?". A jovem sempre alimentou o sonho de cursar - em sentido inverso percorrido por muitos brasileiros que estudam na Bolívia para se tornar médicos - uma faculdade de Medicina no Brasil.
Ela contou já ter feito o curso preparatório em seu país. A jovem chegara em São Paulo (SP) apenas um mês antes do flagrante. Um táxi teria sido encarregado de trazê-la da rodoviária diretamente até a discreta oficina. Na cidade de El Alto, vizinha à capital La Paz, Joana** consertava telefones celulares.
Etiqueta da Argonaut, marca de moda jovem das rede varejista Pernambucanas (Foto: BP) |
A partir de então, auditores e auditoras da SRTE/SP decidiram aprofundar as investigações para verificar a eventual repetição das ocorrências constatadas na confecção das peças da Vanguard em outras oficinas irregulares e para coletar subsídios adicionais para embasar as conclusões oficiais.
A fiscalização teve acesso ao pedido de compra do lote (2.748 peças) do "casaco longo moletom - tema Romance Gótico", da Argonaut, que os libertados costuravam no momento da ação. As Pernambucanas pagariam R$ 33,50 por cada peça à Dorbyn e venderia a mesma por R$ 79,90. O valor pago pela Dorbyn por cada blusa à oficina de costura era de R$ 4,30.
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