10 de março de 2008

Como morrer mais cedo em São Paulo


Por Gilberto Dimenstein

Por dia, a poluição mata prematuramente 12 pessoas e produz 200 vítimas de pneumonia e outras doenças

CHEFE DO LABORATÓRIO DE POLUIÇÃO DA USP , integrante do comitê científico da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard e professor titular de patologia, Paulo Saldiva chegou ao topo de sua carreira, mas sente-se um médico frustrado: "Faço diagnósticos, mas não consigo curar", lamenta.

Ele e seu grupo de 30 pesquisadores da USP diagnosticam que, por dia, na cidade de São Paulo, a poluição mata prematuramente 12 pessoas e produz 200 vítimas de pneumonia, infarto do miocárdio, asma, otite, entre outras doenças. É o suficiente para reduzir em um ano a expectativa de vida do paulistano.

As invisíveis partículas que saem dos escapamentos dos automóveis mataram, em 2007, o dobro- isso mesmo, caro leitor, o dobro -do que os assassinatos. Se imaginarmos um estádio superlotado do Morumbi, teremos uma idéia do que representam anualmente as 200 pessoas que todos os dias adoecem por causa da poluição.

A frustração de Saldiva é que, apesar de seu diagnóstico baseado em pesquisas científicas, a poluição aumenta e mata cada vez mais gente, mas não gera tanta mobilização como a violência, a maior preocupação dos paulistanos.

As duas últimas semanas serviram para aumentar a frustração de Saldiva -um médico que, para dar o exemplo, se locomove pela cidade montado em uma bicicleta.

De 2006 a 2007, como noticiou a Folha, aumentou em 54% o número de vezes em que a qualidade do ar estava imprópria. Nesse mesmo período, a taxa de homicídios na cidade de São Paulo caiu 22%. Desde 1990, a redução foi de 73%.

Nas duas últimas semanas, foram noticiados recordes de congestionamento, inclusive em períodos razoavelmente sossegados para os padrões locais. "Não vemos os políticos dispostos a enfrentar os donos de automóveis", critica o médico. Politicamente, isso é explicável.

Convivem na cidade 11 milhões de habitantes e 6 milhões de automóveis, 800 dos quais licenciados a cada 24 horas. Não é necessário ser um matemático para ver que a imensa maioria dos eleitores está motorizada.

São agradados, no geral, com pontes, viadutos, alargamento de ruas e avenidas, levados à ilusão de que a circulação vai melhorar. As obras rendem votos (e, quem sabe, ajuda em caixa de campanha), mas não soluções. Tanto não rendem soluções que já existem cálculos sobre o dia e a hora em que a cidade vai, literalmente, parar.

Existe luz no fim do túnel? Existe. Mas ainda está muito difícil enxergá-la justamente por causa do excesso de fumaça.

Os crescentes incômodos com o trânsito e com a ecologia, traduzidos nas horas paradas e nas mortes e doenças, abrem espaço para que, nesta eleição municipal, se discuta até que ponto vale a pena apoiar medidas impopulares e, ao mesmo tempo, gestões urbanas mais sofisticadas.

Sofisticadas significa integrar diferentes níveis de governo no financiamento de transportes públicos. Apenas agora, depois de quase três décadas, a prefeitura deu dinheiro para a expansão do metrô, que não recebe um centavo (exatamente isso, centavo), de Brasília -um desdém indesculpável diante de uma região com tanta importância nacional.

Assim como são sofisticados os planos de integração dos vários sistemas de transportes, formando uma malha eficiente, acoplados a projetos destinados a aproximar moradia ao trabalho. Um dos planos mais ousados é a recuperação da orla ferroviária, antiga área de fábricas e hoje subutilizada, em pólo dinâmico, tirando-se proveito da existência de centenas de quilômetros de trilhos.

Medidas dessa complexidade exigem uma política diferenciada para as regiões metropolitanas, a começar da aliança de vários prefeitos vizinhos, em parceria com o governador e o presidente.

Mesmo que saiam do papel, esses planos não bastam. Os mais experientes especialistas de trânsito asseguram que serão exigidas medidas antipáticas. Uma delas é limitar as entregas de carga a determinados horários, o que desagrada aos comerciantes. Outra, ainda mais impopular, é fazer pedágio urbano para tirar os carros das ruas e, ao mesmo tempo, financiar o transporte público.

Vai dar muita briga, mas, depois, todos vão aceitar. Ninguém quer mais tirar o rodízio nem se pede mais o fim dos talões de zona azul, duas medidas que provocaram incômodos quando lançadas. O que não sabemos é se, desse pleito, vai sair um plano capaz de colocar seu projeto político individual abaixo dos interesses coletivos e topar uma briga que pode-se perder no presente, mas se ganha no futuro.

O prefeito de Londres impôs o pedágio, apanhou de todos os lados, mas venceu e hoje é reverenciado pelos londrinos e aplaudido mundialmente pela sua coragem.

O que está em discussão não é o trânsito, mas a construção de uma sociedade civilizada. Provavelmente, vai aparecer a luz no fim do túnel quando os eleitores ficarem tão irritados com as mortes provocadas pela poluição como os assassinatos cometidos por marginais.

Não fosse a pressão, São Paulo não teria reduzido em 73% o número de assassinatos.



Gilberto Dimenstein, 48, é membro do Conselho Editorial da Folha e criador da ONG Cidade Escola Aprendiz. Coordena o site de jornalismo comunitário da Folha. Escreve para a Folha Online às segundas-feiras. - retirado do site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimenstein/colunas/index.htm