13 de janeiro de 2007

O jornalismo que transforma

O jornalista paranaense Mauri König tem muitas histórias para contar. Histórias que incluem agressões, no início da carreira, perigos e acima de tudo relacionamentos humanos que ele pôde, de alguma forma, ajudar a melhorar.

A história que envolve agressão começou em novembro de 2000, quando König iniciava sua carreira jornalística como repórter do jornal O Estado do Paraná, em Foz do Iguaçu. “Tinha muito contato com jornalistas do Paraguai e da Argentina, por causa da proximidade da fronteira. Naquele novembro, meu colega César Palácios, que então trabalhava no jornal ABC Color, me disse que adolescentes brasileiros estavam sendo recrutados para o serviço militar obrigatório no Paraguai“, conta.

Logo, o jornalista percebeu que ali havia uma grande reportagem. Após ir cinco vezes ao Paraguai para percorrer as cidades próximas da fronteira, o jornalista encontrou vários casos. “Numa cidade chamada Santa Rosa Del Monday, a uns 80 km da fronteira, entrevistamos dois brasileiros de 17 anos que estavam prestando serviço na delegacia local (no Paraguai o serviço militar também pode ter relação com a Polícia Nacional, ligada ao Exército)“.

Em outra cidade, San Alberto, König também encontrou brasileiros em uma delegacia, só que desta vez se deparou também com agressores, que queriam impedir a publicação da matéria. Ele foi parado em uma suposta blitz policial quando voltava por uma estrada de terra batida, cortando plantações de soja. “O homem que me fez sinal para parar vestia farda da Polícia Nacional. Pensando se tratar mesmo de uma blitz, parei e no momento em que ia apresentar meus documentos, recebi um soco no nariz ainda dentro do carro. Meus óculos caíram e aí comecei a ver tudo meio borrado. Só pude observar que outros dois homens, em trajes civis, saíram detrás da caminhonete, me agarraram pelo colarinho e me jogaram ao chão. Os três começaram a me chutar e a me bater com uma corrente e pedaços de pau. Não tive como reagir. Eram três sobre mim. O jeito foi virar de bruços para proteger meu rosto“.

A certa altura, conta Mauri, um dos homens forçou o joelho em suas costas e enlaçou a corrente no seu pescoço. “Quando eu estava praticamente perdendo os sentidos, ele puxou a corrente, levantou e deu mais alguns golpes com a corrente nas minhas costas. Eles riam muito e falavam em guarani (a língua nativa do Paraguai) enquanto batiam. A única coisa que disseram, numa mistura de espanhol e português, foi que eu nunca mais ia voltar ao Paraguai. De repente, pararam de bater e foram embora“.
König teve a máquina fotográfica destruída, o filme arrancado e velado, o carro danificado com chutes e pauladas. Com uma faca ou pedra escreveram no capô: ‘Abajo prensa de Brasil’. Mesmo dolorido, o repórter dirigiu por uns 80 km até chegar à sucursal do Diário Notícias em Ciudad del Este, em busca do socorro de amigos. Ali, o jornalista Juan Carlos Salinas avisou toda a imprensa paraguaia, que cobriu a agressão, e depois o levou ao consulado brasileiro.

No Instituto Médico Legal de Ciudad del Este encontraram mais de 100 hematomas no corpo do jornalista. O mesmo exame foi feito por um juiz forense da cidade vizinha de Hernandárias. O Ministério Público desta última cidade abriu um inquérito, que exatamente um ano depois foi arquivado por falta de provas. “O comando da Polícia Nacional em Ciudad Del Este me levou para reconhecer os agressores, mas não pude fazê-lo porque no momento do atentado eles estavam com bonés e óculos escuros que cobriam praticamente todo o rosto. O caso teve grande repercussão na imprensa paraguaia, mas ficou na impunidade“.

A reportagem foi publicada no dia 24 de dezembro de 2000. Depois disso, König não pensava mais em voltar ao assunto. Mas surgiram várias informações que a situação era ainda mais grave do que ele havia noticiado. “Uma das minhas fontes foi um coronel que me ajudou, com a condição de que ficaria no anonimato. Prometi preservá-lo e ele começou a revelar coisas absurdas que aconteciam. Jovens eram recrutados para o tráfico de drogas dentro dos quartéis, onde também eram abusados sexualmente e mortos por mera diversão de oficiais“.

Com estas novas informações o jornalista decidiu dar continuidade à reportagem, mas estava com medo de retornar ao Paraguai. “A então senadora Elba Recalde montou um esquema de segurança para que eu pudesse ir a Assunção sem maiores problemas. Fui então com o fotógrafo Silvio Vera. Ficamos três dias na capital paraguaia e fizemos uma série de entrevistas. De fato, fomos e voltamos sem problemas. A segunda parte da reportagem foi publicada em abril de 2001, também em O Estado do Paraná. O título desta vez era: ‘Mentiras encobrem crimes nos quartéis’”. Ao todo, foram quase cinco meses de investigação e no final o jornalista pôde mostrar que 109 jovens, de 12 a 18 anos, haviam sido mortos de forma misteriosa nos quartéis do Paraguai entre 1989 e o início de 2001. Foram mortos com tiro na cabeça e no peito, espancados ou induzidos a tentar fuga dos quartéis para serem abatidos a tiros.

Depois do atentado, a imprensa paraguaia passou a dar mais visibilidade à questão do recrutamento de menores de 18 anos para o serviço militar. Na ocasião, agências internacionais de notícias também noticiaram a agressão. Um ano depois, por pressões da ONU, o Congresso paraguaio desengavetou uma antiga lei e tornou facultativo o serviço militar no país.

Infância no limite

Mauri König se dedica a questões ligadas à infância há vários anos. Essa preocupação garantiu a ele, em 2003, o título de Jornalista Amigo da Criança, concedido pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi). “Isso me levou a concorrer no 2º Concurso Tim Lopes para Projetos de Investigação Jornalística, promovido pela Andi, no qual ganhei uma bolsa para realizar uma reportagem que incluía uma viagem pelas fronteiras do Sul e parte da fronteira Centro-Oeste do Brasil, para tratar da exploração sexual de crianças e adolescentes. Junto com o fotógrafo Albari Rosa, percorri 9.200 quilômetros de carro durante um mês, entre setembro e outubro de 2004“.

A reportagem retrata casos de exploração das mais variadas formas e, ainda, faz um mapa das rotas de atuação das redes locais e internacionais que exploram crianças e adolescentes. “Em Ciudad Del Este, cidade paraguaia na fronteira com Foz do Iguaçu, eu e Albari ajudamos no resgate de uma menina de 12 anos que estava sendo explorada sexualmente por outra de 14. A situação nos sensibilizou de tal forma que não podíamos ficar indiferentes, ao encontrá-la em condição deplorável durante a madrugada, nos arredores da cidade. Passamos todo o dia seguinte empenhados em mobilizar as autoridades e a polícia para resgatá-la, o que acabou acontecendo à noite“.

A repercussão foi tão boa que König fez outro projeto, em 2005, para percorrer as fronteiras do Norte do Brasil. “Detalhei o tempo necessário, o roteiro da viagem e os custos. A direção da Gazeta do Povo acreditou no projeto e, novamente, eu e Albari saímos a campo”. Desta vez eles percorreram 13 mil quilômetros de carro, 4 mil quilômetros de barco pelos rios da Amazônia e 2 mil quilômetros de avião. Foram, portanto, 19 mil quilômetros em dois meses de viagem. Ao final dos dois projetos os profissionais percorreram 28 mil quilômetros por toda a fronteira habitada do Brasil, literalmente do Oiapoque ao Chuí.

O jornalista vai transformar esta viagem em um livro, em fase de finalização. “Pretendo publicar no primeiro bimestre de 2007. Nele, farei uma narrativa parcialmente em primeira pessoa, mostrando as diferentes situações que encontramos“.

Família Melo

Em junho de 2004, Mauri König saiu da redação do jornal Gazeta do Povo para fazer duas matérias, mas voltou com 15. Entre elas, a história da família Melo, que vivia em condições subumanas na zona rural de Mangueirinha, região sul do Paraná. “Eu e o fotógrafo Albari Rosa saímos para fazer uma avaliação das estradas não-pedagiadas do Paraná e o que resta do espólio do extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC) no norte do Estado. Quando viajamos juntos, eu e o Albari costumamos revezar no volante. Naquele momento, Albari dirigia e eu seguia apreciando a paisagem bucólica quando, de repente, vi três crianças correndo num barranco à beira de uma rodovia estadual. Pedi para Albari dar meia-volta. Ali tinha algo não muito certo“.

O faro de König estava correto: as crianças moravam ali. Mas não só isso. No decorrer da entrevista com pai, mãe e quatro filhos (um a mais do que vimos correndo no barranco), eles observaram a dualidade daquela gente: pais desesperançados e filhos esperançosos por um futuro melhor. “O que nos chamou a atenção foi que eles estavam sendo devorados pela miséria, literalmente. Todos, sem exceção, estavam com os dedos tomados por bichos-de-pé. O caso mais grave era do menino Luís Gabriel, de 5 anos, que já estava com os movimentos comprometidos. Alguns meses mais e ele começaria a ter problemas de locomoção“.

O jornalista relacionou a história desta família ao problema da pobreza no Paraná, no Brasil e no mundo. “Busquei explicar o problema com números e entrevistas com especialistas. A reportagem comoveu os paranaenses, que, liderados pela Pastoral da Família, conseguiram ajuda para a Família Melo. Além de brinquedos, roupas e comida, os Melo ainda foram incluídos no programa habitacional do município, uma vez que viviam numa tapera que sempre inundava nos dias de chuva. Hoje, a família mora numa casa nova, num conjunto habitacional“.

Prêmios
Foram quatro, com a reportagem do exército do Paraguai. O mais importante foi o Prêmio Lorenzo Natali, concedido pela Federação Internacional dos Jornalistas e pela Comunidade Européia em 2002, além do Prêmio de Direitos Humanos da Sociedade Interamericana de Imprensa. Um ano antes, em 2001, a reportagem já havia ganhado o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria Regional Sul, e o Prêmio Imprensa Embratel, também na categoria Regional Sul. “Com a matéria sobre a família Melo recebi em 2004 meu segundo Esso (Regional Sul)“, conta Mauri König.